Intervenção Psicológica com públicos LGBTI

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Comunidade LGBTI: Possibilidades de intervenção

Os últimos trinta anos foram profícuos no reconhecimento generalizado dos direitos de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo (vulgo, LGBTI) como direitos humanos, um pouco por todo o mundo.

Esse reconhecimento refletiu-se em mudanças legislativas diversas – da discriminalização das relações ao reconhecimento de conjugalidades e famílias homoafetivas – mas também numa maior visibilidade pública por contraposição a um passado histórico, quase universal, marcado por criminalização, patologização, perseguição, preconceito, estigma, discriminação, insulto e violência contra pessoas cujas identidades, orientações e/ou relações não seguem a expetativa hetero- e cisnormativa. Contudo, apesar de uma aparente maior “tolerância” social e um alegado atenuar de pensamentos, discursos e atitudes LGBTIfóbicas prevalece ainda uma ampla cultura de desigualdade estrutural, em vários contextos, que continua a fazer da luta contra a desumanização de pessoas LGBTI uma luta com sentido. Contra uma certa ideia instalada de uma sociedade amplamente liberal e progressista, pessoas LGBTI continuam a serem constituídas involuntariamente como vítimas de múltiplas formas de preconceito, discriminação e violência, das mais subtis (e.g., microagressões) às mais expressivas (e.g., terrorismo), o que compromete gravemente a sua integridade física, a sua saúde mental e as suas oportunidades de sucesso e ascensão social, em igualdade de circunstâncias com os seus congéneres heterossexuais – e cuja heterossexualidade não se constitui per si um motivo de exclusão –, e nos impede simultaneamente de falar de uma sociedade realmente equalitária em que a “orientação sexual” ou “identidade de género” seriam caraterísticas alegadamente irrelevantes ou privadas, como seria suposto que fossem.


Os estudos das últimas décadas no campo da Psicologia são unânimes em indicar que pessoas LGBTI tem maior tendência para o suicídio (real ou tentado) que os seus congéneres heterossexuais, devido precisamente – não à sua sexualidade per si, mas
– aos obstáculos que direta- ou indiretamente lhe são socialmente impostos e isto é particularmente grave nas crianças e nos/as jovens que estão num processo sensível de “descoberta”, exploração e desenvolvimento das suas identificações, personalidades, preferências e valores. Estes dados lançam um grande desafio aos/às profissionais de saúde mental que ao mesmo tempo que são chamados/as a intervir com indivíduos, grupos e comunidades socialmente vulneráveis, muitas vezes sentem não ter o conhecimentos, competências e ferramentas para trabalhar com estas populações em específico, ora devido aos tabus existentes na sociedade, ora devido aos seus próprios preconceitos, uma vez que eles/as próprios/as detém as suas próprias orientações sexuais e identidades de género, posicionamentos, preconceitos e modos de viver e estar na vida.


A mudança de leis a um nível macrosistémico, ainda que importante, não se fez acompanhar de (in)formação das populações no contexto microsistématico onde ainda grassam preconceitos e desinformação, sendo imperiosa a necessidade de formar indivíduos e grupos. Na verdade, prevalece uma escandalosa falta de oferta formativa em Portugal, que, em certa medida, decorre desses mesmos tabus, e sobre os quais os discursos retóricos em torno de uma alegada “ideologia de género” não ajudam a desfazer, impedindo os/as profissionais de procurar formação de qualidade. Parte das críticas a um alegado “politicamente correto” também decorrem do facto das mudanças legais não se fazerem acompanhar de uma mudança assertiva de mentalidades nos microcontextos de vida e é nesse sentido que a necessidade de educar e formar para o respeito com a diversidade sexual, afetiva e/ou familiar contra a ignorância se apresente como fundamental.

 

Direitos LGBTI: da patologização ao modelo afirmativo

 

Como tão bem explicou Gabriela Moita na sua tese de Doutoramento discursos homofóbicos de grupos médicos, o conceito de homossexualidade discurso científico no século XIX a partir de uma difusa noção de “doença” ou “déficit” (entretanto com inúmeras designações – inversão, perversão, etc.) que, de algum modo, já traduz (e, ao mesmo tempo, ampara) o extremo estigma social a pessoas LGBTI e às suas relações, visão que perdurará ao longo de todo o século XX, interrompida apenas no seu final. Médicos psiquiatras, entre outros profissionais de saúde, foram chamados a “curar” ou a “corrigir” eventuais “tendências” e/ou “comportamentos” sexuais dos indivíduos, e esse tratamento assumiu uma multiplicidade de formas, desde internamentos em manicómios até a tratamentos hormonais ou com eletrochoques, forçados, obviamente ofensivos à dignidade humana. A evolução da ciência ao longo de todo o século XX e XXI, fazendo-se acompanhar de uma visão mais abrangente, holística e complexa da sexualidade humana à medida que novos movimentos sociais se afirmavam, foi demonstrando que pessoas LGBTI detém um ajustamento psicológico e social dito “tão natural” e “tão saudável” quanto o ajustamento das pessoas heterossexuais, não sendo a existência de uma orientação não-heterossexual per si um impeditivo para o desenvolvimento integral da personalidade.

A própria consideração moral e subjetiva da orientação/comportamento homossexual como “desviante”, além de carecer de validade científica, implicaria que a maioria dos comportamentos (heteros)sexuais, necessariamente não-reprodutivos (e.g., sexo oral), pudessem igualmente ser classificados como “desviantes” ou “disfuncionais”. A retirada da homossexualidade da lista de parafilias do Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (vulgo DSM) em 1973 representou, pois, uma grande conquista para grupos LGBTI e mais recentemente também a própria transexualidade tem abandonado essa visão patologizadora. Desde da década 80, tem- se, pois, desenvolvido aquilo que se chama a Psicologia Afirmativa: uma modalidade de prática psicológica que em vez de procurar “curar” a sexualidade dos indivíduos, visa acolher e escutar pessoas não-heterossexuais e/ou não-cisgéneras, em relação às suas identificações, adotando uma postura de integração e respeito.

O modelo afirmativo não se configura como uma abordagem ou uma corrente teórica específica da Psicologia, mas, sobretudo, como uma postura ética que orienta a escuta e o processo terapêutico e analítico, centrado na promoção do bem-estar de indivíduos LGBTI e na aceitação de si (sobretudo quando o tema é apresentado em consulta), sendo amplamente reconhecida e recomendada por várias instituições representativas da Psicologia, como a Associação Americana de Psicologia (APA), entre outras. Contudo, nem sempre estas práticas são aplicadas por muitos/as psicólogos/as que, em pleno século XXI, continuam a adotar posturas patologizadoras ou, no mínimo, pouco integradoras da diversidade sexual, mesmo que cada vez mais essas “terapias de conversão” tenham sido legalmente proibidas. Ao mesmo tempo, outros/as profissionais sentem não ter conhecimento apropriado sobre comunidades, culturas, problemáticas e léxicos LGBTI, à medida que questões trans, não-binárias, assexuais e intersecionais adquirem maior visibilidade.

 

Formação sobre questões LGBTI em Portugal

 

Não sendo inexistente, é praticamente residual a oferta formativa para profissionais de saúde mental em Portugal que vise dota-los/as de conhecimento, competências e ferramentas para lidar com problemáticas LGBTI e a desenvolver, criar e implementar práticas legítimas de intervenção psicossocial. Como deve lidar um/a psicólogo/a com um/a jovem que quer “assumir” a sua homo- ou bissexualidade aos pais ou que é trazido/a à consulta porque o fez? Ou com um/a jovem que sente que está num “corpo diferente”? Como lida um/a psicólogo/a quando é convocado/a para falar numa escola com professores/as sobre temas LGBTI, sobre bullying ou educação sexual? Ou profissionais que querem desenvolver projetos contra a discriminação no trabalho ou trabalhar questões de idadismo LGBTI? Por exemplo, na minha tese de Doutoramento sobre bullying e homofobia, pude comprovar que, apesar das mudanças sóciolegais, os/as docentes raramente intervêm em situações de bullying homofóbico por não saberem como intervir.

 

Desde de 2019 que o Instituto CRIAP, dentro da sua linha já habitual de preocupações em torno da promoção da igualdade e justiça social, tem cooperado com a Associação ILGA-Portugal e o resultado é o Curso Avançado de Intervenção Psicológica em Públicos LGBTI (ECLGBTI). Com base ontológica no modelo afirmativo, o ECLGBTI tem como objetivos gerais: a) dotar os/as formandos/as de competências que lhes permitam diminuir o impacto do estigma e stress minoritário nas pessoas LGBTI; b) aprender conceitos específicos relacionados com a orientação sexual, identidade de género e características sexuais; c) adquirir conhecimentos sobre boas práticas de intervenção. Ainda que possa ser gerador de questionamentos, o termo “intervenção psicológica” não partilha, obviamente, de conceções patológicas no sentido de “curar” ou “converter” a orientação sexual, mas já pressupõe a abordagem afirmativa de respeito para com as identidades dos sujeitos, ou não tivesse o curso o aval da ILGA- Portugal, a mais antiga e conceituada associação de defesa dos direitos de pessoas LGBTI em Portugal.

 

O ECLGBTI é pois uma aposta num tema singular, socialmente pertinente e inovador, que cada vez mais passa a ser abraçado pelo mundo da formação, sendo também útil não apenas aos/às profissionais de saúde mental, mas para outros/as profissionais interessados/as no tema, nomeadamente os/as professores/as, educadores/as e formadores/as na área do(s) género(s) e da(s) sexualidade(s) e que procuram uma formação de qualidade. Ao promover este curso, o CRIAP não só demostra uma real preocupação com a aquisição de saberes, mas, sobretudo, um profundo comprometimento com a promoção de uma sociedade mais justa, equalitária e inclusiva. É definitivamente esta aliança indissociável entre inovação, formação profissional e responsabilidade social a pedra-toque distintiva que coloca o CRIAP na vanguarda do conhecimento em Portugal.

 

Pretende aprofundar mais sobre o Curso avançado de intervenção psicológica em públicos LGBTI?

 

O Instituto CRIAP conta com o Curso Avançado de Intervenção Psicológica em Públicos LGBTI onde pode explorar questões LGBTI, adquirir conhecimentos e competências de como intervir com indivíduos e grupos LGBTI e desenvolver boas práticas relacionais com esta população.

 

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Artigo da autoria de:
Hugo Santos

Licenciado, Mestre e Doutor em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCE-UP), onde se envolveu em diversos projetos de investigação e intervenção cívica e social (e.g., IP-CHALID/Turquia, IP- H.E.L.P./Eslováquia e IP-ERASMUS/Hungria). Com a sua tese de Doutoramento sobre diversidade sexual em contexto escolar, na linha da investigação educacional sobre juventudes, cidadania e participação, ganhou o Prémio SPCE/De Facto Editores 2018 da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, uma das mais altas distinções nacionais na área das Ciências da Educação. Com experiência recente em projetos sobre jogos sérios (e.g., JoSeES), tem adquirido um crescente interesse pela área das novas tecnologias educacionais, gamificação e da formação à distância. Com o CCP, já desenvolveu atividades enquanto formador em várias áreas – envelhecimento ativo, educação para a cidadania, educação sexual, jogos sérios, entre outros –, e atualmente exerce a atividade de Técnico de Formação no Departamento de Ensino à Distância (EaD) do Instituto CRIAP, construindo assim um percurso sólido na área da Educação e Formação.

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